Gosto de sentir cada pessoa, as suas características, as suas preocupações, a forma como acreditam na vida ou, por vezes, deixaram de acreditar. Gosto de me recostar na cadeira e escutar a melodia das palavras, a dança da expressão corporal, por vezes acanhada, por vezes altiva, em modo de defesa. Afinal, começamos por ser estranhos, até a relação terapêutica se desenvolver.
Nessas minhas andanças, observo frequentemente que pessoas que sofrem de dor persistente apresentam alguns traços em comum que embora menos apoiados pela ciência, não deixarão de ter o seu impacto e, quem sabe, terão mesmo um lugar de destaque, em breve. Quando lhes pergunto o que lhes dá prazer na vida, faz-se silêncio. Um silêncio acompanhado de um olhar para o teto, à procura de uma resposta, em tempos, bem sabida.
Apercebo-me que num assumir de postura de dia-a-dia, o EU se foi perdendo, o prazer foi substituído pelas obrigações responsáveis com a família, com as contas para pagar, com o trabalho. A actividade física foi substituída pelo sedentarismo, tantas vezes em gesto de repetição em qualquer linha de montagem ou posturas incorrectas em frente a um computador. O bom ambiente de escola primária foi substituído por um cenário hostil de sector laboral, com colegas que "fazem a folha" e chefes que não vêem o verdadeiro valor. A vitalidade do corpo foi substituída pelo cansaço físico e mental, que prefere não pensar no assunto. O metabolisbo rápido e eficiente foi substituído pela dificuldade em queimar calorias e o peso foi-se adensando. Os sonhos foram substituídos pela resignação "ao que é".
Apercebo-me que o corpo reage perante ameaças ou a ideia de ameaça e que o sistema nervoso, em ligação directa com o sistema imunológico assume as rédeas e desencadeia respostas de defesa. Apercebo-me que a pessoa sente dor mais facilmente, com estímulos ligeiros (hiperalgesia e alodínea), apercebo-me que o corpo está em constante tensão muscular (resposta reflexa à nocicepção e resposta eferente cortico-retículo-espinal). Avalio a presença de sinais inflamatórios/ irritabilidade (pela acção de mediadores neuro-imunológicos nos tecidos, nos axónios, no GRD, na espinal medula, no tálamo, no córtex). Observo que a falta de horas de sono de qualidade interfere com a resposta dor, o stresse, a alimentação. Penso na alterações neuro-fisiológicas que vão surgindo da periferia para o cérebro e do cérebro para a periferia. Penso que o corpo está em perfeita rejeição da realidade à sua volta, como se gritasse um "já chega!".
E se na ausência do EU, na ausência de felicidade, de contentamento, o "corpo" decidir bloquear as suas funções mais básicas e alterar o seu sentido? Para uns, a resposta poderá ser a ansiedade, o medo, para outros, poderá ser a dor propriamente dita, sem relação aparente com a sua função essencial - a de defesa transitória do corpo. Gosto de pensar na espiritualidade (diferente de religiosidade) como um encontro com o eu interior e que na ausência desse equilíbrio, o organismo reage, à procura dessa homeostasia ou simplesmente em protesto.
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CV: Tiago Freitas é Licenciado e Mestre em Fisioterapia, possuindo ainda uma Pós-Graduação em Intervenção da Fisioterapia na Dor Crónica e Disfunções do Sistema Nervoso Periférico. Dado o seu currículo, é formador de diversos temas relacionados com a Dor Crónica e a sua prática clínica, em contexto privado, centra-se tanto nesse tema como na Fisioterapia Músculo-Esquelética.
Fonte: Retirado da página Neurodor - http://www.neurodor.pt/noticias/artigo/fisioterapia/espiritualidade-da-dor