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Publicado a 26/09/2019

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Gabriel Martins

Onde estão os Nutricionistas nas equipas de ciclismo? | Por Gabriel Martins (Bwizer Magazine)

Gabriel Martins

Este artigo fez parte do Número 6 da Bwizer Magazine – pode vê-la na íntegra aqui.

 

“Lá fora”, a maioria das equipas de ciclismo do pelotão profissio­nal conta com o seu próprio nutricionista. Em Portugal a, nutri­ção ainda é prescrita pelo médico da equipa, pelo treinador, pelo fisioterapeuta ou pelo biomecânico que, de maneira intrusiva e sem formação base em Ciências da Nutrição, continuam a ali­mentar as “ciências da desinformação” naquele que é, provave­lemente, um dos desportos mais exigentes do planeta e que por esse motivo precisa de bons Nutricionistas.

Aqui vos escreve um apaixonado pelo mundo do ciclismo e pelas bicicletas desde tenra idade (algo que posso agradecer ao meu pai). Aqui vos escreve um ciclista, ainda que amador, que sente que na pele aquilo que se “sofre” em cima de uma bicicleta, que sente as exigências físicas e mentais que este desporto implica. Por último, mas não menos importante, aqui vos escreve um Nutricionista, emigrado em Espanha, que tra­balha diariamente com ciclistas e que vê neles confirmada a importância que a alimentação (prescrita pelo Nutricionista) tem no rendimento, recuperação e saúde deste desportista.

Este artigo é sobre isso. Onde estão? Porque não estão? Mas sobretudo, porque deveriam estar os Nutricionistas naquele que é um dos desportos mais exigentes do planeta.

 

Dezembro de 2018... faltam 6 meses para começar o Giro D’Italia. Os ciclistas da equipa apresentam-se para o primeiro estágio da pré-temporada. Claramente acima do peso de com­petição e fora de forma, começam a traçar-se objetivos para a temporada. “Temos de atingir um pico de forma no início de Maio para o Giro e outro no final de Agosto para a Vuelta”, diz o diretor desportivo. “Preciso que eles estejam dentro do peso nessa altura e a recuperar bem entre cada treino. Faz o que tens a fazer”.

O Nutricionista da equipa começa então a traçar diferentes pla­nos ajustados a cada microciclo. Este profissional tem como função garantir que cada treino é cumprido segundo o plano tra­çado pelos treinadores; que a recuperação é otimizada através da alimentação; que se aproveitam os treinos longos e de baixa intensidade para maximizar adaptações; que a composição cor­poral é otimizada, ou seja, o peso reduzido sem interferir com os ganhos de força. Tudo em simultâneo.

 

É assim que as coisas até ao momento, não se estão a fazer em Portugal. Não há Nutricionistas nas equipas de ciclismo. Há sim, como sempre houve, membros do staff técnico que dão suple­mentos aos atletas, lhes dizem para cortar nos “hidratos”, para fechar a boca, treinar em jejum e sair só com um 1 bidão de água para 4h.

Quando se tem uma visão tão redutora e “Jurássica” da alimen­tação, o treinador ou até o vendedor de suplementos a “prescre­ver nutrição”, misturado com alguma falta de interesse por parte de colegas Nutricionistas em investir nes­ta área, cria-se a receita perfeita para que não exista um acompanhamento adequa­do destes desportistas.

Sendo o ciclismo um desporto onde o peso tem uma importância fulcral no rendimento, o risco de empregar estratégias de redução de peso radicais(¹) em ciclistas é muito grande. Isto faz do ciclismo um desporto onde existe um elevado risco de desnutrição causada por um défice energético intencional (RED-S: Relative Energy Deficit in Sport) que tem consequências muito graves e bem reportadas em investigações atuais, como níveis muito baixos de densidade mineral óssea, complementados por níveis baixos de testosterona.

A maneira mais fácil de explicar o impac­to que a nutrição tem numa modalidade tão física e exigente como o ciclismo, é enumerando alguns dos muitos aspetos que podem correr mal na alimentação de um ciclista:

• Um controlo desajustado da compo­sição corporal ao longo da pré-temporada pode fazer com que o ciclista auto-em­preenda técnicas de redução de peso drásticas nas últimas semanas antes de uma corrida e que podem deitar por terra todo o treino de meses;

• Ao não periodizar a dose de hidratos de carbono diária de acordo com o trei­no do ciclista (menor quantidade em dias de baixa intensidade e maior em dias de grande intesidade/ duração) podemos es­tar a perder uma janela de oportunidade para amplificar importantes adaptações ao treino que podem ser decisivas duran­te uma corrida;

• Fornecer antioxidantes de manei­ra crónica e não aguda poderá também inibir algumas adaptações ao treino que podem ser decisivas em etapas mais exi­gentes e, sobretudo, na capacidade de recuperação;

• Não “treinar o intestino” para supor­tar, quer o tipo, quer a quantidade de todos os snacks energéticos a utilizar du­rante a corrida nas semanas anteriores à prova (géis, barritas, isotónica), poderá provocar distúrbios intestinais graves du­rante a competição;

• Fazer uma carga de hidratos de car­bono desajustada no dia anterior, quer por excesso, quer por defeito, pode com­ prometer seriamente o rendimento do ci­clista;

• Em competições com etapas de vá­rios dias, ao não seguir um protocolo de recuperação rápida de glicogénio com um aporte de hidratos de carbono e hidra­tação adequado, o ciclista não consegui­rá recuperar a tempo de voltar a competir com intensidade no dia seguinte;

• Suplementar sem qualquer crité­rio, seguindo os conselhos de colegas, vendedores de suplementos ou outros membros do staff técnico que não o Nu­tricionista, pode também comprometer o desempenho do ciclista.

Não é à toa que há quase uma década, as equipas do Pro Tour levam para o Tour de France o seu respetivo Chef que junto com o Nutricionista, implementam menus desenhados inicialmente apenas para nutrir, em obras de culinária que não somente nutrem, como reconfortam e se “comem com os olhos”, minimizando o efeito da possível perda de apetite depois das competições. O aporte energético a suprir durante uma competição de ciclis­mo é elevadíssimo, existindo casos como o de Chris Froome que na etapa 19 do Giro d’Italia de 2018 apresentou um dispêndio energético bem superior a 6000 kcal.

Por outro lado, é comum vermos nas re­des sociais, sobretudo no Instagram, ima­gens e “stories” de ciclistas profissionais (e amadores que imitam os profissionais) com o seu prato de esparguete na noite anterior e no pequeno almoço antes de competir. Uma rotina que parece estar parada no tempo desde os anos 90 e que assenta na ideia de que as massas, são o único alimento para se comer numa carga de hidratos de carbono no jantar ou pequeno-almoço anteriores à compe­tição. E isto é mau? Talvez! Se por um lado vemos bem documentado a nível científico os défices calóricos e de micro­nutrientes nas dietas de ciclistas, quando somamos o fator “monotonia alimentar”, só estamos a agravar o problema.

Se por um lado o esparguete continua a ser o “rei”, as papas de aveia serão a “rai­nha” que facilmente conquistou um esta­tuto beatificado no pequeno-almoço do ciclista moderno, sobretudo influenciado pelo mundo do fitness.

Mas isto não é uma rubrica de crítica ao esparguete, muito menos à aveia. É uma ode à variedade por parte de um Nutricionista que opina que ao jantar, também existe batata e arroz (sendo que este último, não precisa ser integral), e ao pequeno almoço, as torradas com marmelada, doce ou mel, junto com outros cereais açucarados (sim açucarados - sacrilégio!) como corn flakes podem ser uma opção. A variedade, tal como na maioria dos contextos, é fulcral, sobretudo num desporto onde a suscetibilidade de restrição energética voluntária por parte dos atletas é tão elevada.

A nutrição não vai certamente fazer ne­nhum milagre, nem transformar um mau ciclista num Peter Sagan. Mas quando é devidamente planificada por um bom nutricionista, com domínio dos três pila­res fundamentais da nutrição no ciclismo, (i- garantir o aporte de “combustível” para assegurar energia suficiente para o treino e recuperação adequada, ii- manipular hi­dratos de carbono diariamente de modo a amplificar adaptações ao treino, iii- pro­mover uma perda de peso e manutenção adequada ao longo da temporada) ajuda­rá o atleta a estar no seu melhor pico de forma, com um peso reduzido, mas sem comprometimento do seu rendimento físico e com as suas reservas de com­bustível cheias, pronto para ajudar a sua equipa.

 

Este artigo fez parte do Número 6 da Bwizer Magazine – pode vê-la na íntegra aqui.

CV: Licenciado em Dietética e Nutrição e Mestre em Treino e Nutrição Desportiva, Gabriel Martins criou o Podcast Fuel the Pedal, onde entrevista investigadores e nutricionistas ligados ao ciclismo e desportos de endurance. Integra a equipa de nutricionistas da Israel Start-Up Nation / Israel Cycling Academy.

Fonte: Consulte o número 6 da Bwizer Magazine

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